domingo, 1 de fevereiro de 2015

Meu Deus é Melhor Que o Seu

Quando pensamos em Deus sempre olhamos para o alto. Ali sempre esteve o Monte Olimpo, Jeová, Alá, Olorum... Afinal, desde os primórdios da humanidade, muito do que desconhecíamos e temíamos vinha do alto e para lá voltávamos nossa atenção reverenciando e pedindo proteção às forças da criação do Universo. E na construção do arquétipo de Deus nosso ego descobriu mais um caminho para impor sua sobrevivência.

Janeiro de 2015 foi um mês marcado por atentados terroristas em nome de Deus. Desta vez foram muçulmanos radicais, mas ao longo da história da humanidade as perseguições religiosas partiram de diferentes crenças e não é incomum o ataque mais pesado vir do grupo mais numeroso por este sentir-se ameaçado pelas minorias que se expressam de outra maneira, um jeito diferente do seu.

Fico imaginando em que momento da nossa história surgiu a primeira violência religiosa. Estou certa de que os índios guerreavam por muitos motivos, mas não por quererem impor seu Deus uns aos outros, na medida em que se preocupavam mais com as manifestações naturais desse Ente Supremo e elas eram as mesmas para todos.

Em si, a idéia de um criador do Universo, um pai protetor e orientador de caminhos, transformador e estabilizador de emoções, que retribui em dádivas nossa gratidão, não tem nada de errado, ao contrário, isso pode nos trazer muito equilíbrio anímico. No entanto, nós, na nossa manifestação egóica, não conseguimos apenas vivenciar a divindade que pertence a todos, precisamos adorná-la, paramentá-la com nossas ideias para torná-la pessoal e única e em nossa adoração narcísica saber que esta sim, criada ou seguida por mim, é a verdadeira e, portanto, a Correta!

Na disputa para conseguir a salvação no dia do Juízo Final, para garantir nosso assento ao lado direito de Deus-Pai, passamos milênios nos degladiando. Para quê? Para defender uma idéia? Para defender deuses que são onipotentes e que, portanto, não precisam da nossa proteção? Guerrear em nome do amor? E somos nós a espécie mais inteligente do Planeta? Uau! Que medo grande ainda temos do desconhecido e da morte!

Das três cuidadoras que administro para cuidados com minha mãe, uma é católica e duas são evangélicas pentecostais. Como freio que é, percebo que a religião neste caso é importante, pois são pessoas desconhecidas que vieram trabalhar dentro de nossa casa e passaram a participar de nossa intimidade. Cotidianamente noto que essa crença limita fofocas, mentiras e ajuda essas pessoas a serem pessoas com alguma compaixão pelo próximo.

Ainda assim, uma das cuidadoras, não tendo a paciência necessária com os infindáveis queixumes de minha mãe quanto à sua saúde muito fragilizada, por todas as dores e desconfortos que sente, por duas vezes obrigou esta senhora de 89 anos, católica, a jurar sobre a bíblia que ela sentia tudo o que dizia sentir, que era verdadeiro todo o seu lamento, pois, supostamente, ninguém mente em nome de Deus. Minha mãe, com síndrome do pânico, apavorada, se recusou e implorava para não a deixarmos mais sozinha sob os cuidados da pregadora.

Essa cuidadora ainda está conosco e, depois de uma discussão com sua irmã pelo ocorrido, melhorou seu comportamento, embora ainda carregue consigo uma ironia cortante, uma desconfiança de tudo e de todos e sua fé como norteadora do único caminho a ser seguido. Tenta convencer minha mãe a não procurar os médicos que julga precisar e a chama para aumentar sua fé no intuito de encontrar a verdadeira cura física, como se a velhice e a morte não fosse o destino de todos nós, homens de fé ou não.  

Pela nossa convivência não tenho dúvidas de que essa moça, se fosse uma terrorista religiosa, teria coragem de matar em nome de Deus, mas cada um de nós tem suas idiossincrasias e, com poder nas mãos, muitas vezes não sabemos até onde chegaríamos. Por isso, na maioria dos casos não nos cabem julgamentos, mas compreensão.

Ao percebermos a dureza de sua vida e, portanto, do seu caráter, percebemos também o medo de base que a guia. Acreditar que suas escolhas são as únicas a serem feitas e que se todos nós fizéssemos como ela o mundo seria muito melhor faz, por outro lado, que seja uma mulher determinada, trabalhadeira, com garra, que procura ajudar a todos, inclusive minha mãe, com suas orações, seus paninhos e óleos bentos, com sua vontade em não deixar o doente se entregar ao cansaço da vida, em dizer para esse doente que ele pode sim fazer o que diz não conseguir. De um lado a dor e do outro o amor. Só a mandaria embora se a dor pesasse claramente mais do que o amor.

Embora toda barbárie seja injustificável e todo extremismo mostre a inferioridade de nossa espécie, um dos fundamentos da vida humana é o medo da morte e nosso instinto de sobrevivência, hoje já tão ornamentado nos faz crer que foi domesticado, mas como um animal doméstico ele pode nos surpreender com sua raiz mais selvagem.



Não há o que passa, não há quem passa, só há passagem. E a tristeza nos ajuda a vivenciar o luto, a deixar morrer pra poder renascer. O problema é que todo mundo quer renascer, mas ninguém quer morrer. É preciso, portanto, ser capaz de chorar. A menor distância entre duas pessoas é o riso e a lágrima. E é preciso ser capaz tanto de celebrar a existência com a alegria de viver, de dançar a vida, mas também, o que nos torna também humanos, é ser capaz de chorar. (...) Nós não nascemos humanos, nós nos tornamos humanos. Roberto Crema

domingo, 28 de dezembro de 2014

O Fim das Coisas

O ano está terminando, como chegam ao fim todas as coisas. Daquelas que nos trazem sofrimento nos aproximamos do fim com alívio, daquelas que nos trazem bem-estar desde o início queremos prolongar o tempo ao infinito, daquelas que nos trazem dor e delícia ora queremos o fim ora a permanência. Neste último caso, sem saber o que escolher, porque não há opção de escolha, muitas vezes acabamos apressando o rio sem imaginar verdadeiramente o que nos espera quando chegarmos à foz.

Este ano três amigas muito queridas perderam suas mães: duas delas já bem idosas e dependentes plenas, a outra ainda com vida para cultivar. Seja lá qual for a idade e o grau de sofrimento do idoso, passar pela perda definitiva da mãe é enfrentar um fim para o qual nunca estamos plenamente preparados.

Ainda que aos 90 anos, com pouca ou nenhuma lucidez e total dependência de cuidados, não possamos ser vistos como pilares de uma família, o papel de “mãe” contém em si tanto significado que dificulta a separação. Da vida uterina, à nutrição, ao embalo, à admiração pelo filho, à proteção da vida, à prontidão, à reflexão, ao aconchego, ao feminino, ao amor incondicional pode existir uma longa vida que sofre ao perder simbolicamente tudo isso, mesmo que outras pessoas próximas supram, em parte, esse arcabouço de maternidade, mesmo que boa parte dele já tenha sido separado de nós quando lá atrás percebemos que tínhamos que aprender a caminhar com nossas próprias pernas. No momento em que a morte chega para essa mulher, nossa mãe, mesmo a família sabendo que o melhor é o fim por todo sofrimento contido na decadência física do ser, sabe-se que junto com ele irá embora a força dessa figura que é única. E aí dói.

Quando a morte parece chegar antes da hora é ainda mais difícil de compreender porque não existe, pelo menos de imediato, a sensação de alívio pelo sofrimento. Existe o sentimento de que a mãe podia ter ficado mais um pouco, que a cura ainda era uma possibilidade.

Estamos chegando ao fim de 2014. Mudar de ano na nossa cultura significa um recomeço. Do que foi agendado e não foi cumprido vamos esquecer o que não faz mais sentido e deixar para 2015 o que ainda precisa ser realizado. Essa passagem nos remete ao fato de que ao fim das coisas corresponde o início de outras coisas, que o presente momento é o renascimento decorrente da morte do momento anterior e que se não nos diz respeito saber quando a vida física vai acabar, as perdas e renascimentos cotidianos deveriam nos treinar e nos tornar mais sábios para aceitar a impermanência da vida.

Sei que minhas três amigas estão bastante conscientes desta passagem de filhas para órfãs, do conteúdo que se encerrou, mas as três, cada uma à sua maneira, já renasceram para uma nova história.

Os homens vão, vêm, trotam e dançam, e nem um pio sobre a morte. Tudo parece bem com eles. Mas aí quando ela lhes chega e às suas mulheres, filhos e amigos, pegando-os de surpresa e despreparados, que tormentas de paixão os esmagam, que gritos, que fúria, que desespero!... Para começar a tirar da morte seu grande trunfo sobre nós, adotemos o caminho contrário ao usual; vamos privar a morte de sua estranheza, vamos frequentá-la, acostumarmo-nos a ela; não tenhamos nada senão ela em mente... Não sabemos onde a morte nos espera: então vamos por ela esperar em toda parte. Praticar a morte é praticar a liberdade. Um homem que aprendeu como morrer desaprendeu a ser escravo. Michel de Montaigne

domingo, 28 de setembro de 2014

Hibernação


O Blog da Bengala tem hibernado! Talvez seja influência do inverno, embora o frio não tenha vindo com a intensidade natural. Pode, ainda, ser um cansaço, uma monotonia, uma sensação de estagnação. Não temos descido ou subido degraus na vida dos nossos idosos, parece estarmos andando na monotonia do plano.

Olhando um pouco mais atentamente para isso percebo que é uma monotonia necessária. Necessária para ganhar forças para continuar, assim que chegar o que está por vir. Parece ser a hora do descanso, da espera da chegada da alma ao corpo, já que ela havia ficado muito atrás.

Cuidar de um idoso bastante dependente não é o que eu chamaria de algo instigante num primeiro momento, afinal a maior parte das ações são repetidas cotidianamente, algumas, como trocar as fraldas, ministrar os remédios, dar água, colocar bolsa de água quente, escovar a dentadura... acontecem várias vezes ao dia. Faz-se o mesmo por semanas, meses, em alguns casos anos, mas emocionalmente isso parece ser infinitas vezes melhor do que ter que ir ao Pronto Socorro e suportar os dissabores de uma internação!

Muitas vezes sinto-me o protagonista do filme Feitiço do Tempo (Groundhog´s Day): procuro melhorar a cada dia que parece se repetir infinitamente, mas há vezes que me sinto presa, irritada, cansada, injustiçada nessa repetição e, como não posso desaparecer, estou presa no tempo e espaço, então não contribuo com meu melhor.

Fico pensando em pessoas que passaram pela minha vida, em geral mulheres, que tomavam conta sozinhas de parentes doentes acamados. Como ficou e fica a vida pessoal dessas pessoas: sua expressão, sua criatividade, os cuidados com sua própria saúde, sua feminilidade, sua sexualidade? O cansaço emocional é arrasador, o tempo para fazer os exames para controle da saúde é grande, em geral essas pessoas se abandonam, esquecem-se de si mesmas. Onde encontrar tempo para a expressão do feminino e do masculino se a situação é tão limitadora?

Para o idoso parece não ser diferente. Quando ele ainda tem lucidez, a limitação física somada à falta de vontade de fazer qualquer coisa faz a noção de tempo ficar completamente alterada. Se a isso somarmos um estado depressivo, o tempo não passa, o idoso fica nervoso, irritado, as dores incomodam mais do que o normal, a inquietação faz com que ele chame as pessoas para ficarem à sua volta o tempo todo e qualquer cisco fora de lugar é um assunto de suma importância para ser resolvido imediatamente, qualquer acontecimento banal ganha status de terceira guerra mundial.

Os cuidadores contratados, ainda que habituados à situação, muitas vezes não são cuidadores por vocação e a repetição cotidiana somada ao agravamento lento e natural do estado de saúde do idoso começam a ruir a vontade de estar no emprego. O coordenador da equipe precisa manter a chama acesa que, a meu ver, só é possível pela gratidão da presença e da dedicação, ainda que muitas vezes estejam aquém do esperado.

Não tenho dúvida que essa situação trata-se de um treinamento militar de paciência, para todos!

Por outro lado, sabemos que um dia não é igual ao outro, porque nunca é. Nunca somos os mesmos que éramos há poucos segundo atrás. Isso também podemos ver no Feitiço do Tempo. Para o idoso ora a saúde melhora, ora a saúde piora, de modo geral as dificuldades aumentam; depender totalmente do outro é desaparecer em vida como indivíduo.

Para os familiares que convivem com o idoso existe sempre um desafio na manutenção da qualidade de vida do doente. Em que médico levar, qual especialidade será mais adequada, como consertar os prejuízos de uma escolha médica errada, como resolver de forma simples diversas limitações que surgem diariamente. Sejam quais forem as escolhas, precisamos saber esperar pelos seus frutos.

Para o cuidador um dia de mais calma é um dia de retomada de energia, de descanso. A atenção deve ser constante e, como acontece com as crianças, um segundo, apenas um segundo é o bastante para tudo virar de ponta cabeça.


(...) Morre lentamente quem se transforma em escravo do hábito, repetindo todos os dias os mesmos trajetos, quem não muda de marca, não se arrisca a vestir uma nova cor ou não conversa com quem não conhece. 
(...) Morre lentamente quem evita uma paixão, quem prefere o negro sobre o branco e os pontos sobre os “is” em detrimento de um redemoinho de emoções, justamente as que resgatam o brilho dos olhos, sorrisos dos bocejos, corações aos tropeços e sentimentos.
(...) Morre lentamente, quem passa os dias queixando-se da sua má sorte ou da chuva incessante.
(...) Evitemos a morte em doses suaves, recordando sempre que estar vivo exige um esforço muito maior que o simples fato de respirar. Somente a perseverança fará com que conquistemos um estágio esplêndido de felicidade. A Morte Devagar, de Martha Medeiros